sábado, 1 de abril de 2017

Sombra e Água

[Esta reflexão vem na sequência do meu texto "The Ideal Tune of the Violin", onde descrevo grande parte da minha evolução psicológica desde criança até adulto. Incorpora já alguma dessa linguagem.]

O meu conceito de família ideal - uma família modelo, verdadeira, unida - ansiava ser instanciado num mundo que parecia querer dar tão pouco, ou ter tão pouco para dar. Talvez por isso passasse tanto tempo dos meus dias de Verão na minha varanda traseira, a olhar para uma vivenda com piscina, esperando que uma certa família, que me conhecia há anos, chegasse: a mãe, uma pessoa extrovertida e que idolatrava companhia e diversão; o filho, um rapaz inteligente da minha idade que tinha à sua disposição todo o tipo de videojogos com os quais eu sonhava; e a avó, dona da casa e a metáfora perfeita para o que eu precisava - e não o que queria - na minha vida.

Alexandrina, uma velhota de 70 - 80 anos com uma sanidade invejável e uma personalidade poderosa. O que me assustava nela era o seu olhar simultaneamente imperscrutável e examinador; fazia-me sentir emocionalmente nu, psicologicamente desprotegido. Vim a perceber que os olhos pretos dela não eram um preto normal, mas sim um preto mais intenso que reflecte a sombra de quem ela mira - a minha sombra, neste caso. Ah, era por isso que me sentia assim - ela estava a olhar para tudo aquilo que me acorrentava, para os monstros que se escondiam na escuridão envolvente do meu ser e eu revia-me nos olhos dela.

Eu era muito novo, não sabia nadar, mas adorava água. Ficava-me pela parte menos profunda da piscina. Certo dia, Alexandrina virou-se para mim e disse:

"Tenho aqui uma corda. Vou atar-ta à cintura e vais aprender a nadar. Eu seguro-te pela corda quando não tiveres pé. Não te vou deixar afogar."

Eu conhecia-a bem demais. Ela não ia desistir - o pânico espreitava. Claro que, racionalmente, eu sabia que podia berrar, explodir ou não me mover de onde tinha pé - deixei-a a atar-me a corda e entrei na água. Avancei pela piscina já com medo, ainda com pé.

"Vamos, não tenho o dia todo. Vais aprender a nadar, garanto-te. Não podes ir para as bermas da piscina, senão nunca perdes o medo. Repito, não te vou deixar afogar - afinal, eu seguro a corda!"

Dei uns passos relutantes em direcção ao profundo e perdi o pé. Comecei imediatamente a esbracejar loucamente e a dirigir-me para a berma em pânico.

"Não! Pára de esbracejar e não vás para a berma. Tenta boiar primeiro, põe-te de barriga para cima e vê como a água te consegue suster naturalmente."

Já estava na berma - ofegante, triste comigo próprio por tentar passar um teste idiota e não conseguir.

"Tu não és nenhum bebé. Tens de saber enfrentar os teus medos, e eu estou aqui para te ajudar. Fá-lo aos poucos. Primeiro, confia. Depois, bóia de braços e pernas abertas. Finalmente, quando vires que a água não te quer engolir, começas a dominá-la."

Respirei. Eu queria aprender a nadar, claro - gostava tanto de água quanto a temia. Aos poucos, afastei-me da berma de barriga para cima e tentei boiar - sentia a corda da Alexandrina a segurar-me a cintura. Abri os braços e as pernas e fiquei suspenso durante uns segundos, os meus pulmões cheios de ar - estava a boiar! Fiquei de olhos esbugalhados a olhar para o céu azul do verão que afugenta sempre as nuvens. Estava mais sereno - não conseguia voar nesse céu, mas boiar era suficientemente parecido.

Quando voltei a mim, olhei devagar para a Alexandrina - ela já não segurava a corda e sorria. Não me mexi, tanto pelo espanto como pela vontade de continuar a boiar. Sorri também - não precisava da corda afinal. Em pouco tempo, estava à vontade para experimentar as minhas primeiras braçadas. Quando finalmente saí concretizado da piscina, Alexandrina olhou-me nos olhos e disse-me:

"Presumo que voltes amanhã. Não vais precisar da corda."

Voltou para dentro de casa. Podia jurar que os olhos dela, ao mirar-me, tinham perdido aquele preto característico da minha sombra - eram agora de um preto humano. A minha mudança era óbvia nos olhos dela.

Em retrospectiva, eu poderia pensar que Alexandrina, ao fazer-me enfrentar aquilo que eu não queria enfrentar, estava apenas a ensinar-me a nadar - algo essencial para uma pessoa que gostava tanto de água. Não é verdade. Existem pessoas que possivelmente nunca vão precisar de nadar na vida, e que não gostam de água, e no entanto iriam usufruir da mesma experiência que eu. Isto porque o que eu aprendi não foi só a nadar - aprender a nadar foi um subproduto de ultrapassar um obstáculo, uma lição muito mais profunda e que está na índole do que é ser humano. 

Estes desafios no mundo físico são apenas instâncias dum desafio metafísico e psicológico mais geral de dominar a sombra e caminhar para a liberdade.

Dar pequenos passos até ficar sem pé e observar que não me afoguei - na água.
Dar pequenos passos até à escuridão me envolver e observar que não morri - na vida.

Sentir-me a voar enquanto bóio e contemplar o céu - na água.
Sentir-me livre por não estar acorrentado e contemplar a minha conquista - na vida.

O que Alexandrina fez foi o que sabia fazer de melhor - cortar as camadas dispensáveis e podres da cebola que é o universo dentro de cada um, sem derramar uma única lágrima. Nesse dia, aprendi a nadar no mar das vicissitudes; a boiar e contemplar a bela paisagem metafísica escondida na sombra.