domingo, 2 de dezembro de 2018

Quetzalcoatl

Dizer que a realidade é estranha é um desserviço abismal.

Nos últimos dois anos, expus à luz a parte da minha personalidade que sempre esteve lá, mas contida, à sombra da realidade. Eu sei que sempre esteve lá, porque sempre me senti aquém de mim próprio. Sentia a garganta presa; havia algo a dizer, mas faltavam-me as palavras; havia algo a sentir, mas faltava-me o tacto; e havia algo no... não quero dizer futuro, mas no "pode acontecer", no potencial, que estava ainda por realizar. E este potencial chamou por mim desde sempre; sob a forma de imagens, de sonhos, de ímpetos, de desejos. Eu estou no espaço, e à minha frente está o meu avô, e atrás está uma imagem, branca, com galáxias nas mãos... um farol no meio do cosmos. E o que está atrás do meu avô é aquilo que quero e nunca vou ter. Mentira, é aquilo que nunca quero ter, mas é simultaneamente aquilo que quero sempre perseguir. É o meu ideal. E durante anos, o meu ideal esteve lá a chamar por mim, e eu sempre achei que tinha de ser um erro. Porque é que uma pessoa como eu, frágil, sem respeito próprio, sem força, sem todas as característica que eu admirava no ser humano, atormentada por dentro, iria ter uma imagem de um ser tão brilhante? Tinha de ser um erro, pensei... mas ele não desapareceu. Nunca. E passo a passo, erro a erro, sonho a sonho, começei a caminhar; e o meu avô estende-me a mão.

Nos últimos dois anos, esta imagem ficou mais lúcida do que sempre. Sonho agora acordado, mas sinto-me na Terra; voo agora acordado, mas sinto em terra; sinto-me sólido agora, mas fluo num rio que só consigo associar à vida. E desde que esta imagem se apresentou tão inegável em mim, que tudo se expressa naturalmente. As palavras fluem sem atrito pela minha análise e emoção, e caem da cascata que é a boca; o meu andar é firme, e sinto o mundo debaixo dos pés, e não sobre mim. As pessoas abrem-me os braços e os olhos, algumas têm medo, outras amor, outras desejo, outras repulsa, e eu sinto tudo, aceito, sinto, e deixo passar. As portas da vida abrem-se, estou no espaço outra vez, e aparecem escadas, escadas construídas pelas pessoas que se abriam para mim, e elas sorriem; e eu quero subir a minha escada, mas quero que elas subam a delas, e encorajo-as.

Nos últimos dois anos, integrei a minha sombra. E a cobra que me pediu para voar, viaja finalmente comigo pelo espaço, e é parte de mim; o que antes era frio e violento expressa-se agora como quente e forte.

Nos últimos dois anos, descobri o meu maior medo; de não viver a aventura do meu ideal; de olhar no espelho e não me reconhecer; de não seguir o farol; de descobrir que traí aquilo que está para lá do meu avô. 

O que é isto que está em mim desde pequeno? De onde veio o farol? Porque é que me movo num potencial com o qual posso interagir? Porquê só agora? Dizer que a realidade é estranha é um desserviço abismal.

Vou-me deixar correr no caudal da vida, aqui em terra; mas no cosmos, sigo sempre a luz detrás do meu avô. Afinal, a cobra tem penas e asas; e o Quetzalcoatl é o casamento da terra e dos céus.