sexta-feira, 27 de junho de 2014

A Paixão de Kepler

Johannes Kepler foi um astrónomo, matemático e astrólogo alemão que viveu no século XVII; as suas contribuições para a ciência, nomeadamente as leis do movimento dos planetas em torno do Sol, ressoam até ao dia de hoje. Kepler é um excelente exemplo de racionalidade e da aplicação do método científico, do abandono do que nos é querido pela adopção do que é plausível, da escolha da verdade em detrimento da fantasia reconfortante. Porquê? Kepler foi educado no seio da igreja e cresceu a adorar matemática e geometria; a sua vontade de compreender a mente de Deus, o Criador, que ele considerava ser um matemático, era inesgotável. Ele desenvolveu desde cedo a ideia da perfeição geométrica no Universo, uma influência, sem dúvida, Pitagórica. Os métodos de observação das estrelas e planetas era ainda limitado na altura, e Kepler, mais teoricamente do que experimentalmente, desenvolveu um sistema em que os planetas descreviam órbitas circulares em torno do Sol, com base no modelo heliocêntrico de Copérnico - a perfeição geométrica do círculo, bem como a sua simplicidade, eram expectáveis de um Deus matemático. As suas ideias ansiavam apenas por uma base experimental forte; quando conseguiu ter acesso a observações recolhidas ao longo de vários anos por um indivíduo chamado Tycho Brahe, Kepler tinha tudo para construir o seu modelo perfeito - excepto que, para sua grande surpresa, os cálculos teóricos não batiam certo com as observações; havia sempre um desfasamento inexplicável na órbita dos planetas. Durante algum tempo, foi difícil para Kepler aceitar os factos dilacerantes; as suas órbitas circulares perfeitas não encaixavam com os dados experimentais. Mas afinal, como pode um Deus matemático, tão perfeito, fazer algo não perfeito? Como podem as órbitas não ser círculos perfeitos? Os pilares em que Kepler baseou a investigação de uma vida inteira abanaram, e chegou a fazer alguns erros matemáticos enquanto tentava mudar a sua teoria para encaixar com as observações - até que um dia, Kepler experimentou assumir um movimento elíptico em vez de circular. Os dados teóricos encaixavam, agora, extraordinariamente bem com os dados experimentais - foi o último golpe para a sua teoria pré-concebida. Contra tudo o que lhe fazia sentido, Kepler formulou as suas três leis do movimento planetário em torno do Sol, não com órbitas circulares, mas elípticas - e Kepler acertou. Isto marcou, de certa forma, o início do método científico, e a partir daí a Astrologia e Astronomia, que antes eram quase inseparáveis, persistiram separadamente uma da outra.

Não é possível, a meu ver, saber a verdade absoluta, mas quando me refiro a "verdade", refiro-me à maior certeza possível em relação a uma questão, certeza essa, geralmente, suportada. O meu ponto de vista é que a verdade é sempre, em qualquer situação, preferível à sua ocultação, à ilusão ou à mentira. O método científico é apenas uma consequência da compreensão da falibilidade e irracionalidade humana na busca pela verdade, baseado no pensamento crítico, e balançando, numa ponta, a abertura de mente, e na outra, o cepticismo. Mas dito isto, que mal pode advir da recusa da verdade? Qual é o problema de acreditar numa ideia que não é suportada por qualquer tipo de prova? Qual é o mal de aceitar uma ideia sem pensar criticamente? Qual é o mal de alguém se enganar a si próprio, se traz felicidade? Uma conduta baseada não na verdade, mas no conforto ou num feeling, pode parecer tentadora a princípio, mas apenas se ignorarmos o facto de que a maior parte das atitudes de um indivíduo vão ser tomadas com base numa ilusão, ou ideia que carece de uma base sólida; mais, as escolhas não só são desprovidas de forte fundamento, como podem vir a ser contraproducentes e prejudicar, a longo prazo, o próprio ou o outro (ex: religião, i.e., não existem provas de que Deus existe, mas actos foram, e são, praticados de acordo com a vontade de Deus; opositores ao Aquecimento Global, que decidem ignorar as provas irrefutáveis de que o Planeta está a aquecer devido a uma contribuição humana extremamente significativa, e preferem aceitar que é um fenómeno completamente natural). As consequências nefastas que podem advir destes últimos exemplos são óbvias; mas se eu acreditar, por exemplo, que cada indivíduo nasce com um destino e um objectivo maior, que mal pode advir desta ideologia? Eu acredito que podem surgir problemas de consistência lógica e moral. Por exemplo, como explicaria eu as violações e mortes de tantos jovens, que nascem e crescem com sonhos e objectivos que lhes são roubados? Como explicaria a fome de tantas crianças no mundo, ou o fim trágico de tantos doentes? Seria moral assumir que eles nasceram com o propósito de sofrer infortúnios e/ou morrer cedo, enquanto que outros tantos, de enriquecer e ser felizes por um longo período de tempo? Se ignorarmos a existência destes problemas, diria que o que advém é óbvio: pode levar a que os problemas persistam por ignorância e/ou falta de acção, o que não é, por si só, moral (só existe solução para um problema se este for considerado real, e não ilusório - caso contrário, não faz sentido considerar uma solução). Se não ignorarmos, podemos arranjar explicações ad hoc para parecer que o destino não é imutável e que podemos apoiar, ainda assim, as causas nobres, não culpando completamente o destino pelo infortúnio dos outros; mas, se é esse o caso, então o destino não é diferente de uma vida tortuosa e algo aleatória, sendo usado para justificar as situações que nos convêm, mas que pode facilmente ser descartado nas situações em que levaria a uma conclusão que é imoral e injusta do ponto de vista humanístico - uma ideologia assim tem fome de consistência mas não tem boca para a comer. Quem escrutina esta forma de ver o mundo, fala também de uma série de ideologias sciency trazidas da Nova Era, que vieram separar a espiritualidade da religião no século XX e que se estendem até hoje, sem comprovação, sem base científica, e até muitas vezes desinformada ou em contradição com a própria ciência (pseudociência). O grande problema é que estas disciplinas aproveitam-se de mentes ingénuas e sem conhecimento científico, que buscam não uma exploração sistemática e racional da verdade, mas paz e reconforto mental independentemente do resto. Atenção, todos temos direito a ter uma filosofia e ideologia de vida, a ter palpites sobre como as coisas funcionam e sobre o seu significado - mas antes de as nossas ideias poderem ser dignificadas, é preciso perceber os factos, para que elas sejam informadas, resistentes e capazes de defesa, e não apenas conceitos vagos e/ou abstractos que reflectem o que queremos que seja verdade, ou o que conseguimos provar apenas a nós próprios. Se os factos chocarem com o que acreditamos que seja verdade, aceitá-los, por mais chocantes e tristes que sejam, em qualquer situação, e fazer valer as nossas atitudes e ideias a partir daí, é, acredito a postura mais correcta a ter. A ciência e o método científico, bem como o pensamento racional e iluminista, sabem que os humanos tendem a distorcer a realidade por natureza, e é por isso que escolheram a razão para construir uma base ideológica sólida. O Kepler queria, apaixonadamente, saber a verdade, escolhendo-a em vez da crença mesmo quando era doloroso. Analogamente, imagino um mundo em que a humanidade tem a coragem de sair da caverna de egocentrismo e ilusão. Dentro deste confortável refúgio, sentimo-nos grandes e seguros; quando saímos para o mundo aberto, para o ar fresco e céu estrelado, sentimo-nos pequenos, quebradiços, insignificantes ao início. Mas para quem está determinado a maravilhar-se com a existência, a contemplar o céu, a admirar e explorar o mundo como ele é, o preço do desconforto é pequeno quando comparado com o valor da liberdade.