quinta-feira, 12 de junho de 2014

Deus I: Perspectiva Lógica de um Milagre

Os meus textos não têm como objectivo último desvalorizar ideologias diferentes da minha; têm, ao invés disso, o propósito de suscitar pensamentos, reflexões e discussões sobre uma pletora de assuntos. A Hipótese de Deus não está, claro, isenta de qualquer crivo. É frequente dizer que Deus é OMNIPOTENTE e OMNISCIENTE, isto é, que tem poder total sobre a realidade e o seu conhecimento do que já foi, que é, e que vai ser, é absoluto; podemos desprezar, para o propósito, a “omnipresença” divina. Além disso, diz-se amiúde que a personagem é capaz de intervir no mundo, num certo instante da história, e fazer “milagres”; à primeira vista, apenas uma consequência lógica da sua omnipotência. Imaginemos, por conveniência, o seguinte milagre: Deus decidiu salvar a vida de apenas UM homem quando um tsunami abateu uma certa cidade e matou milhões – parece-me ser um ponto de partida razoável. Podemos considerar, agora, dois cenários distintos:

1) Deus criou o tsunami. Se sim, porque o fez? Se tinha um propósito último com esse acto (um ensinamento, uma lição, um plano), porque matou quando o poderia não ter feito e provado o mesmo ponto? Devido à sua omnipotência, ele poderia ter alterado todo o curso da história e da natureza humana para que não tivesse de matar e causar sofrimento ao ponto de ter de intervir um dia e salvar apenas um cidadão. Este ponto é mais difícil de discutir para os que acreditam em milagres, uma vez que põe em causa a ética e moral do próprio Deus, e, levando, num caso extremo, ao argumento “Deus funciona de um modo estranho e superior à nossa compreensão”. Trato esta questão no ponto 2), mas para já estou interessado numa perspectiva lógica, e não ética e moral.

2) Deus nada teve a ver com o tsunami. Partindo do princípio que Deus é omnisciente, sabia que o tsunami iria acontecer e poderia ter agido, quer no passado, impedindo o tsunami de se formar, ou no próprio momento, parando o tsunami - tudo isto consequência da sua omnipotência. Se queremos preservar Deus como uma entidade suprema que representa o BEM como é perceptível para nós, temos que forçosamente negar uma das duas características que o definem: ou Deus é omnisciente mas não omnipotente, e sabia do tsunami iminente e nada pôde fazer para o evitar, ainda que tenha conseguido salvar um cidadão, ou Deus é omnipotente mas não omnisciente, e não sabendo que o tsunami iria ocorrer, não pôde agir com toda a sua potência perante tamanha surpresa. Se quisermos admitir alguma destas como verdadeira, toda a perfeição mística em volta de Deus é non sequitur, visto que se ele é BOM, ou não é omnisciente ou não é omnipotente, o que o torna simultaneamente menos divino e mais humano. Em último caso, para preservar ambas a omnipotência e omnisciência de Deus, é comum argumentar, como já tinha referido, que “Deus funciona de um modo estranho e superior à nossa compreensão”. Isto derrota, de certa forma, a definição de BEM supremo, e vai de encontro ao primeiro ponto, onde nos vemos obrigados a discutir a ética e moral de um Deus que (i) SABE tudo e tem PODER absoluto e decidiu criar uma catástrofe por alguma razão (Ponto 1), ou (ii) SABE tudo e tem PODER absoluto mas preferiu NÃO EVITAR uma catástrofe (Ponto 2) - em qualquer dos caos, Deus foi o responsável pela morte de milhares de seres humanos que ele próprio criou. Se Deus age de acordo com uma lógica, ética e moral superior a nós, dizer que ele SALVOU uma única pessoa é um raciocínio arriscado; na realidade, não sabemos se o objectivo dele não seria, de facto, matar todos os habitantes por diversão, visto que a conduta moral subjacente a Deus não só é diferente da conduta moral do ser humano, como não é sequer compreensível pelo mesmo - ergo, todas as conclusões, boas ou más, que retiremos das intervenções divinas são mais do que precipitadas.

O paradigma de Deus, como o vejo, é interessante; se Deus existe (o que eu pessoalmente duvido) não devemos, logicamente, assumir que é como a maioria dos indivíduos o define. Talvez a nossa definição de Bem esteja aquém, e o mesmo aconteça com a nossa definição de perfeição. O ser humano tende a cair em armadilhas mentais por si mesmo fabricadas, consequência, creio eu, da sua natureza dualista (racionalidade vs. irracionalidade). Assim, o ser humano não procura, necessariamente, a verdade absoluta, mas mais especificamente uma verdade própria que a ajude a interpretar esta peça de teatro chamada realidade, interpretada pela ordem e pelo caos no palco do mundo.